segunda-feira, 2 de junho de 2008

Agostinho e a República Romana (2004)

Um análise do pensamento de Agostinho sobre a República Romana
por F. V. Carvalho

Resumo
Servindo-se da definição de república, segundo a qual, no entender de Cipião, a república é coisa do povo, entendendo por povo, não qualquer multidão de homens unidos de qualquer modo, mas uma união fundada no consentimento do direito e na utilidade, e a de povo, no qual um grupo de pessoas estabelece uma sociedade fundada sobre direitos reconhecidos e sobre os interesses comuns, Santo Agostinho inicia suas colocações para negar a existência da república romana como tal.

Substract
Augustine serves up the definition of republic that, in the opinion of Cipion the republic is a people’s thing, understood by people, not any crowd of men united in any event, but a union based on consent of law and the utility, and of people, in which a group of people that establishes a society based on rights granted and on common interests, St. Augustine begin their placements to deny the existence of the Roman Republic as such.

O que se ressalta no texto é ‘a não fundamentação da república romana na justiça e no direito’. Se Roma ainda é república, não o é por seus méritos, pois nela não vigora a justiça. O método e caminho adotado por Agostinho na leitura de Cipião e de Cícero é que possibilita esta análise, embora Agostinho o faça sempre de forma condicional. O direito que deriva da verdadeira justiça é que possibilitaria aos homens estabelecer uma comunidade, uma sociedade. Nesta haveria direitos reconhecidos e por conseguinte, funcionaria com justiça. Mas se o próprio fundamento era inoperante naquele estado, como então poderiam haver direitos e justiça na prática da república?
Agostinho, no fórum adequado para estas discussões (“Este é precisamente o lugar próprio para eu dizer ...”), escreve cumprindo uma promessa feita no livro segundo desta obra. Desde o começo do texto ele deixa claro que sua intenção é questionar a república romana. Para isso ele se vale da definição de Cipião (“ou de Cícero”), segundo a qual a república “é coisa do povo.” Contundente, mas reflexivo, Agostinho utiliza adequadamente as colocações do autor citado; “Se é verdadeira semelhante definição...” O uso do “se” demonstra, a despeito da força das afirmações, que Agostinho dirigia-se aos que consideravam estas definições como válidas, embora o faça no condicional. Ora, valer-se de Cipião ou de Cícero, aqui em Agostinho, implica em aceitar também as definições implícitas contidas nas definições. Então, no dizer dele: “Se é verdadeira semelhante definição, a república romana nunca existiu, por jamais haver sido coisa do povo...”
E Agostinho prossegue ao citar e analisar o povo, os direitos e a justiça. Sobre Cipião, cita que ele “define o povo, dizendo-o sociedade fundada sobre interesses reconhecidos e sobre a comunidade de interesses. Depois explica o que entende por direitos reconhecidos. E acrescenta que a república não pode ser governada sem justiça.” Estas colocações são a partir deste momento, no texto, o pressuposto chave para um direcionamento do debate. Aos poucos a discussão da justiça no âmbito do direito se encaminhará para o âmbito da moral. Para Agostinho “onde não há verdadeira justiça não pode existir verdadeiro direito.” Neste ponto, Agostinho questiona a existência da verdadeira justiça no estado romano. Continua Agostinho: “Como o que se faz com direito, se faz justamente, é impossível que se faça com direito, o que se faz injustamente.” Aqui, o que se mostra no pensamento agostiniano é uma fundamentação do direito na justiça. Ele prossegue: “Com efeito, não devem chamar-se direito as iníquas instituições dos homens, pois eles mesmos dizem que o direito mana da fonte da justiça e é falsa a opinião de quem quer que erradamente sustente ser direito o que é útil ao mais forte.” Da leitura dos trechos citados por ele (de Cipião e de Cícero) aos seus próprios comentários, uma linha clara se apresenta: a da fundamentação do direito na justiça. Com base nisto, Agostinho chama as instituições romanas de iníquas, aqui denotadamente pelo proceder que negava a justiça. A negação da república e consequentemente das suas instituições passam todas pela questão do direito e da justiça. Quando Agostinho fala “eles mesmos dizem...”, o texto deixa transparecer que a referência aqui não é aos autores citados, mas ao dizer comum dos homens daquele tempo. Neste ponto também, se ressalta que para Agostinho, justiça não é a prevalência do mais forte sobre os demais. E nesta linha de pensamento, Agostinho ainda afirma: “Portanto, onde não existe verdadeira justiça não pode existir comunidade de homens fundada sobre direitos reconhecidos e , portanto, tampouco povo, segundo a definição de Cipião ou de Cícero.” Para mostrar a importância da justiça na fundamentação do direito e da constituição de uma república, Agostinho caminha pelas definições dos autores citados com muita adequação e mostra que a negação de um pressuposto pode claramente levar a negação dos encadeamentos a ele ligados. Nem mesmo uma comunidade de homens existiria num lugar onde não há justiça. E nesta forma de pensar, não existe povo.
Nesta linha de raciocínio, Agostinho avança: “E, se não pode existir o povo, tampouco a coisa do povo, mas a de conjunto de seres que não merece o nome de povo.” A coisa de povo, a qual Agostinho se refere é justamente a república. A república romana se basearia em falsos pilares, pois não estaria constituída sobre um povo conforme se esperava. Se não havia direitos, por não haver justiça, por conseguinte, não haveria povo, mas apenas “um conjunto de seres que não merece o nome de povo.” Assim como nas colocações iniciais, Agostinho continua utilizando o condicional “se”, e isto é adequado, pois sua discussão vai, não no plano da negação efetiva, mas condicional e hipotética.
“Se, por conseguinte, a república é coisa do povo e não existe povo que não esteja fundado sobre direitos reconhecidos e não há direito onde não há justiça, segue-se que onde não há justiça, não há república.” Aqui, Agostinho refaz de maneira conjunta e sistemática as colocações que levam a deduções óbvias, mas vê-se claramente que o pressuposto básico é a não existência da justiça. Pois a justiça é a fonte do direito, que é por sua vez o fundamento da existência do povo, e república é coisa do povo. Ora, até aqui, a linha de pensamento foi bem construída e clara no campo da argumentação lógica. Mas Agostinho ainda não apresentou no texto até este ponto duas questões: o que é justiça, e como a república romana nega esta justiça. O que não é um problema, pois ele irá fazê-lo a partir deste momento. Vejo aqui, que era realmente necessário construir uma argumentação lógica e convincente antes da explicação do que é justiça ou de como ela é negada. No plano da argumentação política era necessário trabalhar com autores que fossem de alguma forma autoridade no assunto. E ao citar Cipião e Cícero, ele o faz com propriedade, pois cita-os no tema em questão. Mas cita-os para mostrar que os romanos estavam fundamentados numa negação da justiça e do direito, o que não legitimava a sua república, pelo contrário, a negava. Trabalhando sempre no condicional, Agostinho leva estas questões para o campo das hipóteses, mas isto não quer dizer que as afirmações feitas eram apenas conjecturações. De forma alguma, eram afirmações de que de fato questionava o proceder da república. O que é relatado pelo texto mostra um autor levando os seus leitores a uma análise mais profunda da fundamentação do direito e da justiça.
O ponto alto, ou na verdade, o fechamento desta parte, se dá no momento em que Agostinho estabelece a sua definição de justiça. Sim, ele mesmo a estabelece. Agora ele não faz uso de outros autores, mas sua própria afirmação: “Pois bem, a justiça é a virtude que dá a cada qual o seu.” A definição agostiniana de justiça é a da reciprocidade. Poderíamos até afirmar que é uma justiça distributiva. A cada um o seu, ou seja, a cada um conforme o seu merecimento ou o seu direito. Se nos parece óbvio, também deveria ser aos intelectores de Agostinho de então. Dar a cada qual o seu é a retribuição individual do direito de cada um. Tanto no direito de propriedade (como Agostinho faz na seqüência do texto) como no merecimento das conseqüências das atitudes. Vale ressaltar que as atitudes, tanto de justiça, como de injustiça, são de propriedade do comportamento particular de cada um. Justiça é aqui então, o merecimento e ao mesmo tempo um direito natural.
Agostinho coloca a justiça no campo das virtudes. Ao fazê-lo, ele eleva a discussão do plano político e material, para o plano moral. Suas perguntas seqüenciais que fecham esta parte caminham nesta direção: “Que justiça é esta que do verdadeiro Deus afasta o homem e o submete aos imundos demônios? Isso é, porventura, dar a cada qual o seu? Ou será que quem tira a propriedade a quem comprou e a dá a quem não tem direito a ela é injusto e é justo quem se furta ao Deus dominador e Criador se e serve aos espíritos malignos?” Esta referência aos “imundos demônios” poderia ser uma referência ao politeísmo ainda presente na república romana ou uma alusão aos detentores da aplicação do direito, que no entender de Agostinho, era injusto. Talvez ainda poderia ser, se dermos prosseguimento à parte primeira do texto, uma referência às “iníquas instituições dos homens.” Submeter o homem àquilo, afastando-o do verdadeiro Deus, ao qual o homem pertence, é para Agostinho uma injustiça. Há ainda uma possibilidade de interpretação de que ao não servir a Deus, o homem estaria servindo a uma ordem inferior de criaturas que agem contrariamente à vontade do criador. Afastar o homem de Deus, entendemos aqui, tem um sentido moral e também prático. Se em Deus reside a virtude, e a justiça é uma virtude, afastar o homem de Deus é também afastá-lo da justiça. E justiça aqui é o fundamento de todo o bom comportamento em sociedade e também o fundamento do estabelecimento dos direitos do povo e dos homens individualmente. Afastar o homem de Deus não seria “dar a cada qual o seu.” Tirar a propriedade e dar a quem não tem direito a ela é injusto? Ora, Agostinho faz uma pergunta para a qual ele tem a resposta, pois ele afirma que a justiça é dar a cada qual o seu. Dar a quem não tem direito é então uma injustiça. A última pergunta é de âmbito pessoal, mas revela a busca da justiça para o estabelecimento do direito: “... é justo quem se furta ao Deus dominador e Criador seu e serve os espíritos malignos?” De modo algum. No entender de Agostinho, segundo suas próprias definições, seria tirar de Deus àquilo ao qual Ele tem direito, pois a Ele pertence. O homem estaria se furtando a si próprio de Deus e se entregando aos “espíritos malignos.” Novamente aqui uma referência aos espíritos malignos, da mesma forma como numa das perguntas anteriores ele faz menção aos “imundos demônios”. Conforme dissemos, é possível aqui mais de uma interpretação e compreensão para esta expressão. O homem não teria então o direito de furtar-se a Deus, pois isto seria injusto e muito mais para servir a estes espíritos. Aqui, Agostinho nos remete a uma relação direta com Deus, vertical por assim dizer, na medida em que a justiça compreende o estabelecimento e manutenção do relacionamento entre o homem e Deus. E numa escala hierárquica, o homem deve primeiro manter-se num relacionamento positivo com Deus, pois é dele fruto e criatura, o que possibilitará o cumprimento da verdadeira justiça.

Fonte da Imagem: (www.santaritadosimpossiveis.org)

Um comentário:

Diego disse...

A história de Roma Antiga é sempre fascinante. Seja ler sobre a fundação de Roma ou sobre República Romana ou o Império Romano!

Abraços!

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