quarta-feira, 31 de agosto de 2011

As Guerras de Religião - O Início (1)

Dr. Frank Viana Carvalho (1)


Resumo
As Guerras travadas entre Católicos e Protestantes (Huguenotes) na França na segunda metade do século dezesseis (entre 1562 e 1598) ficaram conhecidas como "Guerras de Religião". Elas são o desdobramento das diversas consequências da Reforma Protestante iniciada em 1517 por Martinho Lutero. No entanto, na França, a intolerância e a violência não tinham apenas motivações religiosas, mas também (e principalmente) políticas.

O Início das Guerras de Religião

Embora eu não possa no espaço desta tese examinar todo o percurso das idéias dos reformadores na França, alguns aspectos de seu desenvolvimento mostram-se muito importantes para uma compreensão das Guerras de religião e dos escritos revolucionários do período. E é bom salientar, como o fez Broglie (2000), que as Guerras de Religião são um ‘capítulo’ maior dentro da “questão protestante” que começou bem antes de 1562 (massacre de Wassy) e terminou bastante tempo depois de 1598 (Edito de Nantes). (p. 101).[1] O protestantismo, desde o seu surgimento na Europa sofrerá resistências religiosas e governamentais, e seu início na França não foge a esta regra. Lecler (1955), examinando a propagação da Reforma Protestante na França no século XVI, escreveu:
O Massacre de São Bartolomeu em Paris

Do ponto de vista da liberdade religiosa, a história da França no século da Reforma divide-se em dois períodos bem distintos. De 1520 a 1560 prevalece a regra tradicional: uma fé, uma lei, um rei. (...) Não estando ainda os protestantes organizados em partidos políticos, as medidas tomadas contra eles não atingem senão os indivíduos ou os pequenos grupos. (...) A partir de 1560, a minoria protestante, numerosa e politicamente organizada, começa a reivindicar para si, no reino, a liberdade de religião, resolve-se mesmo a exigi-la pela força. (LECLER, 1955, p. 5).


A partir da terceira década do século XVI, as idéias protestantes encontraram na França um terreno fértil e a



começar por Estrasburgo, certamente por sua proximidade com a Alemanha de Lutero, várias cidades da França cedem espaço para as idéias e para a conversão aos princípios da fé reformada. Seguem-se outras em rápida sucessão – Paris, Meaux, Metz, Amiens, Lyon, Grenoble, e em pouco tempo todo o país já recebe a influência dos seguidores de Lutero ou Calvino. (MOURS, 1959, p. 39-41 e 49; LEONARD, 1956, p. 12-16). Mas a repressão e a intolerância também já começavam. Em 1520 o Parlamento de Paris e a Sorbonne manifestaram-se contra a “heresia” e a primeira fogueira é acesa em Paris em 1523, queimando vivo o agostiniano Jean Vallière, acusado de blasfêmia contra a Virgem Maria.

O fogo se espalha pela França, o Parlamento renova e regulamenta a repressão, a Sorbonne torna-se mais intolerante. (LECLER, 1955, p. 11; BAILLY, 1955, p. 5). Diante disso e de outras perseguições país adentro, a atitude do rei é bastante dúbia e pelo menos até 1534 ele age com certa moderação. Mas a partir do “l’affaire des placards” em 1534 ele se volta contra os reformados e a política real começa a tornar-se mais incoerente e intransigente. Mas isso não diminuiu o ímpeto da propagação das novas idéias, pelo contrário, o movimento organiza-se e cresce continuamente. [2] Seguindo uma tendência mais calvinista do que luterana, sobretudo a partir da publicação da edição francesa da Instituição Cristã de Calvino, em 1541, os protestantes franceses contarão com um “catecismo”, “a mais influente síntese da teologia protestante do século XVI” e crescerão com espantosa rapidez. (MOURS, 1959, p. 102-103; BURNS, 1970, p. 186).

Moderado a princípio, os últimos anos do reinado de François I trazem uma violenta repressão aos huguenotes, nome pelo qual os protestantes franceses tornaram-se conhecidos. Em 1539 o rei faz uma aliança com Carlos V, da Alemanha, para o restabelecimento do catolicismo na Europa e neste mesmo ano promulga um Edito “para extirpar e expulsar do reino os adeptos e cúmplices de Lutero que se desviaram da santa fé católica”. Em 1540 o Edito de Fontainebleau estabelece a pena de morte para todos os heréticos, imediatamente aplicada na Provença aos seguidores da seita dos valdenses. (CASTRO, 1960, p. 37). [4] O reinado de Henri II foi ainda mais severo e utilizou o poder do Parlamento para aumentar a opressão sobre a minoria protestante.

Poucos meses após a coroação do novo soberano, criou-se uma instituição que iria ter um importante papel na perseguição aos protestantes, a Câmara Ardente do Parlamento (maio de 1547). Desde sua criação até a extinção em 1550, foram julgados mais de quinhentos casos, com aplicação de penas cruéis. (MOURS, 1959, p. 63-64; LECLER, 1955, p. 25). As prescrições do Edito de Fontainebleau são confirmadas em 1549 e, pelo Edito de Châteaubriant (1551), outra vez regulamentadas e ampliadas contra os reformados, permitindo a quem os delatasse, o confisco e posse dos bens dos ‘hereges’. (CHARTROU-CHARBONNEL, 1936, p. 185). Um fato notável desse período foi a resistência dos tribunais em aplicar a repressão contra os concidadãos do reino. Em 1555, os juristas do Parlamento de Paris tiveram a ousadia de opor-se ao rei. O porta-voz do Parlamento, Pierre Séguier, lembrou ousadamente ao rei que o antigo imperador Trajano havia se recusado a empregar tais métodos “contra os primeiros cristãos, que eram perseguidos como o são agora os luteranos”. Mas o rei não se intimidou e no Edito de Compiègne (1557) proibiu expressamente os juízes de exercer clemência para com os hereges. A política intolerante do rei permanecerá em vigor, velada, mas abertamente executada até o final de seu reino, em 1559.

A morte do rei, ferido por uma lança, foi recebida pelos reformados como um sinal da justiça divina para libertá-los da dura perseguição sofrida. Até mesmo Calvino escreveu sobre isso quando disse que “a tempestade terrível da perseguição que transtornava todo o reino talvez se amaine por este golpe da Providência”. (MADELIN, 1924, p. 81). Mas ele estava enganado e dias piores viriam para os protestantes.

As idéias reformadas que, a princípio tinham se disseminado entre os “pequenos”, encontraram um terreno fértil a partir da década de 1550 entre os nobres da França. Vale destacar que os “pequenos” não eram necessariamente os mais pobres, mas a pequena burguesia, modestos funcionários, humildes comerciantes, operários, alguns camponeses e muitos intelectuais. (MOURS, 1959, p. 92). A partir da década de 1550 a nobreza, já insatisfeita com sua situação no reino e com a perda de privilégios, encontra no zelo religioso uma esperança sincera de obter, na nova fé, lenitivo para a corrupção da Igreja e, em certo sentido, do Estado. Neste momento, a “igreja reformada se estende rapidamente em todo o reino e por todas as classes sociais”. (RESTELLINI & YANNAKAKIS, 1990, p. 62-63). Não há como distinguir os chamados “huguenotes de Estado”, “huguenotes de Religião” e “huguenotes de aventura”. [3] Pequenos e grandes nobres aderem ao movimento. Antoine de Bourbon, príncipe de sangue, cujo casamento com Jeanne d’Albret lhe deu o título de rei de Navarre, foi o primeiro dos grandes a se converter à nova fé em 1555. Seguem-se muitos: Louis de Condé, os Montpensier, onde se destacavam os irmãos Chastillan; Odet, cardeal-bispo de Beauvais; Gaspard de Coligny, almirante de França e François d’Andelet, coronel de infantaria. Alguns anos depois já se contam aos milhares os nobres que haviam abraçado a nova fé.

A partir de 1559, com a morte súbita do rei Henri II, o trono vai ser ocupado sucessivamente por seus três filhos, François II (1559-1560), Charles IX (1560-1574) e Henri III (1574-1589). Todos os desatinos já existentes em potencial durante os reinados de Francisco I e seu sucessor, mas, então, tolhidos pela força e prestígio da vontade real, vão encontrar livre curso sob aqueles “débeis, neuróticos, inconstantes filhos de Henri com a ítalo-florentina Catarina de Médicis” [5]. (ERLANGER, 1960, p. 285-286). Durante o curto reinado de François II [6], o governo é entregue ao duque de Guise, líder dos católicos na luta contra os huguenotes, e opositor declarado dos Bourbon (descendentes de Luís IX, o São Luís). Com o objetivo de libertar o monarca da tutela dos Guise, um complô se organiza sob a liderança de “um aventureiro, Monsieur de La Renaudie”. Mas esta conjuração feita em Amboise foi delatada, e os conjurados, cerca de duzentos, massacrados.[7]  Isso reforça o poder dos Guise, que “posam de salvadores do rei François II”, e aumentam a repressão e perseguição aos huguenotes.

Em dezembro de 1560, o rei, um adolescente de 15 anos que havia sido incapaz de resistir ao poder dos Guise, vem a falecer, dando lugar ao seu irmão, Charles IX, ainda uma criança (10 anos). Catarina de Médicis, sua mãe, assume a regência e, “hostil aos Guise”, tenta governar de forma independente. Uma Assembléia dos Estados é convocada e os representantes reunidos em Orléans deparam-se com a difícil situação financeira da coroa. Opositores “reclamam o confisco dos bens do clero para pagar as dívidas do Estado”, outros pedem “a liberdade de culto aos protestantes”. Catarina aumenta os impostos e, para restabelecer o equilíbrio, tenta impor medidas conciliatórias que permitam aos protestantes exercer sua fé sob certas condições, mas só consegue o fim das perseguições oficiais. (GAUSSEN, 1998, p. 6; CHARTROU-CHARBONNEL, 1936, p. 189). Nessa época, segundo Émile Leonard (1955), praticamente “um quarto do país já havia passado para a reforma”. (p. 29). Mas as perseguições não oficiais não param e neste período (dezembro de 1560 a janeiro de 1562) mais de três mil protestantes são mortos. O Colóquio de Poissy, ocorrido entre setembro e outubro de 1561 foi uma das tentativas de Catarina de Médicis para apaziguar os lados beligerantes. O chanceler liberal Michel de L’Hôspital, cuja esposa era uma huguenote, abriu o encontro convidando as duas partes ao diálogo e ao entendimento. Numa reação imediata, o arcebispo de Lyon, Cardeal Tournon, levantou-se para protestar contra a própria natureza da Assembléia, mas por fim, permitiu-se que representantes de ambas as partes discursassem: Théodore de Bèze pelos reformados e o teólogo jesuíta espanhol Diego Lainez, pelos católicos. Divergências teológicas impediram o acordo e deixaram os cerca de cinqüenta bispos presentes aborrecidos com a realeza, que os colocara em pé de igualdade com os protestantes.

Os huguenotes, percebendo as intenções diplomáticas de Catarina, conseguem uma vitória: é promulgado em janeiro de 1562 o Edito de Saint-Germain, que autoriza o culto dos reformados ao redor das cidades. Mal tiveram tempo para comemorar: em 1º de março de 1562, os huguenotes de Champagne achavam-se reunidos em Wassy na celebração de um culto, quando, surpreendidos pelo duque de Guise e sua tropa, foram massacrados. Situa-se ali, historicamente, a primeira guerra de religião, embora outros incidentes menores já houvessem ocorrido anteriormente. (BROGLIE, 2000, p. 101; MIREPOIX, 1950, p. 55). Os huguenotes, que desde 1560 já haviam se organizado politicamente em um partido, armam-se para se opor aos ataques dos Guise, mas quando se enfrentam em dezembro na cidade de Dreux, são novamente derrotados.

Este período marcará a influência de Catarina de Médicis na tentativa de, com arranjos e combinações, dar fim à luta “fratricida”. (DUBY, 1958, p. 340). Em março de 1563 ela consegue a promulgação do Edito de pacificação de Amboise, que sendo mais restritivo aos protestantes, agrada aos seus opositores. O Edito só permite o culto dos reformados em ambientes fechados. Esse interlúdio, de muita intolerância e de poucos e inexpressivos confrontos só dura quatro anos. Entre setembro e novembro de 1567, após provocações de ambos os lados, ocorrem combates em Meaux e Saint-Denis. Em março de 1568 virá o Edito de paz de Longjumeau, marcando o fim da segunda guerra de religião, mas em agosto começará a terceira e mais longa das guerras desse período conturbado. Ocorrem combates em Poitiers, Tours, Jarnac e Moncontour, onde Louis de Condé morre no campo de batalha. Gaspard de Coligny está agora sozinho na liderança militar e política dos huguenotes e faz valer seu papel: vence batalhas em Languedoc, retoma o vale do Rhône e estabelece em Charité-sur-Loire. Seus comandados retomam Tours e Poitiers. Enfrentamentos continuam a ocorrer em diversas partes do país e a paz só virá em agosto de 1570, com o Edito de Saint-Germain, que concede aos protestantes cidades onde teriam segurança e liberdade de culto (La Rochelle, Cognac, Charité-sur-Loire e Montauban). (BERTIÈRE, 1994, p. 459-463; CHARTROU-CHARBONNEL, 1936, p. 192). Com as vitórias e a crescente influência de Coligny, vem outro ganho em favor dos protestantes: ele é feito almirante e torna-se conselheiro do rei, que se inclina em direção aos huguenotes.

(continua)


Fonte:
CARVALHO, Frank Viana. Tese Doutoral - O Pensamento Político Monarcômaco: da limitação do poder real ao contratualismo. Orientador: Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 2008, p. 191 - 196.

(1) Frank Viana Carvalho, doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo - FFLCH (Doutorado SW [CNPq] na Université François Rabelais, França), mestre em Filosofia (FFLCH-USP), mestre em Educação (UNASP), Especialista em Psicologia da Adolescência (Bracknell – Inglaterra) é professor titular do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo – SR.

Notas Explicativas:
[1] Emmanuel de Broglie (2000) utiliza adequadamente a expressão “questão protestante” para o caso francês. Ao longo de toda a história do movimento protestante na França, as perseguições e dificuldades praticamente nunca deixaram de existir. Vale lembrar que o Edito de Nantes que marcou o fim das Guerras de Religião foi revogado em fins do século XVII e mais de 250.000 (duzentos e cinqüenta mil) huguenotes tiveram de deixar a França. Na verdade, as perseguições continuaram até o fim da revolução francesa, já no final do século XVIII, quando os protestantes tiveram finalmente a igualdade de direitos com relação ao restante da população francesa.

[2] L’affaire des placards – Na noite de 18 de outubro de 1534, cartazes da autoria de Antoine Marcout (pastor de Neuchatel, Suíça) que falavam contra a missa católica foram afixados em várias cidades francesas. Um desses cartazes foi afixado na porta do quarto do rei François I, em Amboise. Em resposta a essa ‘provocação’, o rei declara abertamente sua fé na Igreja católica e inicia uma grande perseguição aos protestantes na França. (RESTELLINI & YANNAKAKIS, 1990, p. 62-63).
[3] Segundo Josèph Chartrou-Charbonnel (1936), o termo ‘huguenote’ será inicialmente utilizado na França por volta de 1551 na região de Tours e sua origem parece ter vindo da Alemanha onde eidgenos (ligado por juramento), na pronúncia genebrina torna-se eiguenot, surgindo daí a expressão que designa o grupo calvinista francês. (p. 186). Dominique Gaussen (1998) afirma que o termo vem de eidgenossen, que seriam os confederados sob as ordens de Genebra. (p. 6).
[4] A seita data do século XII, fundada por Pedro Valdo em 1170. Em 1530 seus remanescentes aderem à Reforma. As perseguições iniciadas em 1540 chegam ao máximo em 1545, quando uma expedição militar enviada contra eles dizima a população de várias aldeias e vilas. Calcula-se em cerca de 5.000 o número total de vítimas.
[5] Catarina de Médicis, esposa de Henri II, era filha do florentino Lourenço de Médicis e sobrinha do papa Clemente VII.
[6] François II (embora jovem) casou-se com Maria Stuart, filha de Jacques V, rei da Escócia e de Marie de Lorraine, irmã do duque de Guise. Após a morte de seu esposo, Maria Stuart terá reativado o seu direito ao trono escocês.
[7] Émile Leonard (1955), baseando-se em D’Aubigné, historiador da época, chama este período de “primeira Saint-Barthélemy”, no qual “3.000 vítimas foram apunhaladas, esquartejadas, lançadas de precipícios, estranguladas, espancadas até a morte, queimadas, enterradas vivas, afogadas, sufocadas, e deixadas a morrer de fome”. (p. 30).
Fonte da Imagem: cinemahistoriaeducacao.com

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